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sábado, 17 de março de 2012

Tudo Se Resume A Uma Segunda Chamada


Antes de atender a segunda chamada, ouça a primeira.



Como previsto, ele telefonou, e eu atendi.
- Boa noite.
- Boa noite.
- Tem algo em mente?
- Tenho sim. Uma vez ensinei uma senhora a sorrir.
E contei-lhe o sucedido.
- Veja bem.
- O quê?
- A sua essência. A essência dessa senhora.
- O que tem? Ensinei-a a sorrir, do modo como pude.
- É isso que admiro neste momento. E acredito admirar por muito mais tempo. Deu-me a provar um pouco da sua essência, e da essência dessa senhora. Deu-me a provar um pouco mais da essência humana. E sinto-me bem. Embora haja aqui uma ligeira diferença; eu contei-lhe uma história triste, e a senhora contou-me uma história com um final feliz.
- Relatos diferentes, mas ambos têm o mesmo propósito. A sua história acabou com uma pessoa desconhecida a procurar essências e a minha acabou com duas pessoas a viverem com um sorriso na cara. A felicidade aparente está em ambos os fins. E, em parte, sinto que fui rude do modo como o tratei ao início disto tudo.
- Oh, não se apoquente com isso. Já tive reacções muito mais negativas que a sua, pelo menos ao início. Outras, aderiram logo. Mas desses que aderiram prontamente, a maioria apenas procurava um abrigo emocional. Coisa que, infelizmente, por aqui não me compete.
Seguiu-se uma outra longa pausa, e preferi pensar que aqui estávamos ambos a meditar sobre quem somos humanamente.
Senti-me estranha com aquilo tudo. E depois disto, o que se segue?
Haverá o dia em que este desconhecido me deixará de telefonar, mais cedo ou mais tarde.
O que acontecerá até lá, e depois disso?
Com uma leve gaguez nervosa e um enorme receio, ousei perguntar:
- E agora?
- Diga?
- Estava a-a pensar... Ha-averá o-o dia e-em que i-isto acabará...
- Do que tem receio? Tem medo?
- Sim, tenho medo. E-e depois disto? E a-agora?
- Não acha que essas perguntas estão a ser feitas prematuramente?
- Lá no fundo, sei que é, é cedo para isto. M-mas estou a ser sincera.
- Ainda é cedo. Assentemos os pés na terra, e quando chegar a altura, nada será preciso dizer. Ambos o saberemos.
Dei um longo suspiro, e subitamente pareceu-me não sentir o chão sob os meus pés.
- Sente-se cansada? Já é tarde.
- Sim, um pouco. Talvez me deite.
- Agradeço ter-me contado a sua experiência. Boa noite.
- Boa noite.
Desliguei. Apressei-me a deitar, para pensar que aquilo não acontecera.

Os dias passaram, e ambos partilhávamos um pouco de essência um do outro.
Conseguimos rir, chorar, suspirar, brincar, enfim, tudo o mais.
Por fim, o silêncio. Este ditaria o fim.
Ousei dizer:
- E é isto.
- O quê?
- Tudo acaba aqui...
- Pois...
- Enfim, foi bom falar consigo.
- Espere.
- Aqui estou.
- É mesmo o fim?
- Creio que sim.
- Ou é a senhora que quer ditar o fim?
- Dei o máximo de mim, e o mesmo é consigo. E tudo sem precisarmos de dizer quem somos. Não criámos laços. Estamos independentes. Eu não ditei o fim, o fim ditou-se.
- Tem razão. É isto o fim.
- É isto o fim. - repeti.
- Espero poder ter a oportunidade de a telefonar uma vez mais.
- Não me esquecerei da sua voz.
- Sinto-me lisonjeado. Eu também não me esquecerei da sua voz. Nem da sua essência. Não direi adeus, mas sim um até logo. Gostei de a conhecer.
- Eu também gostei de o conhecer. Então até logo.
- Até logo.
E desligámos ao mesmo tempo.



Mais uns dias depois, e sentia já saudades de ter o telefone a tocar àquela hora.
Senti-me mais só que nunca.
Vagueei pela minha casa, sem saber o que mais fazer.
Sentei-me, cabisbaixa.
E quando levantei a cabeça para olhar para a frente, vi uma lista telefónica.
Peguei nela, e pensei se o deveria mesmo fazer.
Peguei no telefone, abri a lista, e comecei a telefonar.

Comecei a ser a estranha que telefonava para conhecer as essências, e a Essência.


Numa aula de Filosofia, o nosso professor mostrou-nos um episódio antigo do programa de curtas metragens "Onda Curta". Este texto foi inspirado numa das curtas exibidas. O fim e o enredo é diferente, mas mantive a personagem estranha e o seu motivo.



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